Uma história sobre transformação e amor proibido, com sensualidade, tragédia e magia aquática, em que o destino de uma mulher encantada se entrelaça com a origem de um rio. (Lê-se em, aproximadamente, 2h.)
Prólogo
Ecos de uma lendária fala chegam distantes. Vêm de um túnel profundo e húmido. Ressoam consoantes e vogais indistinguíveis. Escuto, fico à espera. Será gente? Os humanos não soam assim. Aproxima-se. Um mergulho suave, o rebuliço na água, bolhas a aflorar. Será peixe? Os peixes não nadam assim.
É quimera, certamente.
capítulo I
Melusina habitava um vasto lago. Não era um lago verde e turvo, sem nada que comer; era o lar da sereia de água doce e isso significava prosperidade.
Num dia de sol, em que o astro exultava o seu fulgor sobre todas as coisas pequenas e terrestres, Melusina emergiu das profundezas. Conformada à luz tímida do meio aquático, a claridade ofuscou-a por breves instantes, pelo que sombreou a face com uma mão na testa. Inspecionou as redondezas, à procura de uma imagem? Um som, um cheiro? Um sinal? Reconheceu um alfaiate, cujas patas criavam indentações à superfície da água. Ao longe, borboletas de asas amarelas rodopiavam nenúfares-brancos. O murmúrio de regatos longínquos vinha surdo à maioria dos seres, mas não à Melusina. Ergueu a face e inspirou profundamente, sentindo o cheiro floral e quente da manhã. Não encontrou o que procurava.
Voltou a submergir, impulsionada pela sua cauda de serpente. Os raios celestes atravessavam a massa de água, gordos e vibrantes. Avistou a ponta de uma erva-do-peixe-dourado; depois, outra e ainda outra – hirtas, desde o fundo até ali. Duas enguias serpenteavam-nas, lânguidas, absortas em conversa. Não se aperceberam da presença da sereia; ao contrário de um quarteto de carpas que, atraídas pelo brilho adamantino da sua cauda, abanaram-se para lhe contar os últimos mexericos do cardume. Ela comentou, riu-se e depois continuou até encontrar algas verdejantes, bracejando ao sabor da fraca corrente. As rochas, cobertas de um musgo suave, ofereciam o berço que a sereia agora ansiava.
Melusina encostou a cabeça à cama fofa. Caiu numa espécie de entorpecimento, os pensamentos enleados num desejo, qual? Que lhe interessava a carpa maluca? Deixá-la fertilizar os ovos de uma fêmea qualquer. Ainda assim, as horas passavam doces ali, se ela pudesse parar de pensar, sentir. Um coma eterno. Eterno? Será que desejava morrer? Eles não tinham notado. Queria se mexer, mas o peso da água aprisionava. O que mais haveria a descobrir? Despertou. Ainda reverberava dentro do seu crânio: «O que mais haveria a descobrir? O que mais haveria a descobrir? O que mais haveria a descobrir?». A semente da inquietação estava plantada. 3
Capítulo II
A semente encontrou terreno fértil. Infiltrou-se, proliferou e dominou, qual erva daninha. Após alguns dias, tornou-se claro: era tempo de partir. O seu trabalho no lago fora concluído. Existiam outras águas a explorar – menos dóceis, onde poderia encontrar um novo propósito. Não era uma ideia estrangeira a um ser secular: os tempos de calmaria e tempestade, cíclicos, faziam parte da sua história. Assim, a sereia despediu-se dos amigos e dos lugares. A saudade iria corroê-la, mas o entusiasmo de trilhar o inexplorado servia de bálsamo.
Brotou de nascentes, nadou aquíferos ignorados, desaguou em rios, avistou lagoas e charcos, percorreu a altura de cascatas furiosas, desceu por cursos de água dramáticos; desceu, desceu, desceu até que, no crepúsculo de um dia de outono, encontrou a cauda do continente. Aí, esgueirou-se pelo buraco que dava à luz um rio. Este era diferente. Sentia-o na água: um sabor a pestilência, um cheiro a padecimento e uma mancha pérfida que turvava a visão. O seu corpo todo atravessou pela fenda e viu-se a nadar para jusante, atenta a cada recanto onde a vida se manifestava. No entanto, a mulher-serpente não avistou nem um peixe, nem uma rã, nem um verme tubícola.
Quando a água salobra lhe preencheu as papilas gustativas, a sereia percebeu que o oceano começava a abraçar a foz do rio, num estuário. As espigas-de-água-de-bronze e as algas castanhas tornavam-se menos raras do que a montante, mas os caules das primeiras, moles, vagueavam o fundo do rio; nelas e nas pedras quase despidas de musgo, enleavam-se os talos das segundas. A devastação apoderara-se daquele lugar. Que se passara ali? Onde estavam as bogas, os barbos e os ruivacos? Chegavam memórias de uma catástrofe há muito esquecida, como é que se chamava? A Grande Fome. Sim, era isso. Os corpos embatiam contra a água, afundavam-se; os troncos a puxar os membros para o fundo, cabelos longos a cobrir os rostos, pequenas bolhas de água a sair das bocas e crianças, muitas crianças. Não pode acontecer de novo. Se ela conseguisse descobrir a origem. Barbos! Sim, falaria com eles.
A sereia deslizou até se encontrar frente-a-frente com um cardume disperso. Ao se aperceberem da sua presença, os peixes pararam e as cabecitas viraram-se em uníssono. Ela sorriu. Alguns pestanejaram, outros gelaram; poucos fugiram.
– Olá! – disse a mulher-serpente.
Perante a melodia, o cardume reduziu-se a um borrão, pois os peixes apertaram-se uns contra os outros. Ela estava habituada a este tipo de receção, por isso, apresentou-se e explicou o que pretendia. Os anciãos reconheceram o nome da sereia e recordaram-se de histórias de feitos majestosos, embora não as conseguissem reproduzir com exatidão. Era o que Melusina esperava. Isto muito apazigou os ânimos aquáticos, pelo que a sereia viu o seu empreendimento facilitado: um sujeito de escamas mais verdes do que cinzentas, ponta da cauda manchada de azul turquesa e robustez superior, avançou na sua direção e ofereceu-se para lhe falar.
– Desci este rio e não encontrei a azáfama dos cardumes. Tudo o que é vivo parece moribundo. Como poderá isto ser?
– Não sabemos. Uns morrem de uma doença que desconhecemos; outros, de fome. As algas e as plantas deixaram de nascer, ou de crescer, e…
– E os insetos parecem afugentados das águas – completou a mulher-serpente, num sussurro.
O Barbo aquiesceu.
– Pel’o que nos contaram os anciãos, percebemos que tens ajudado outras águas a sarar. Tens ideia do que está a provocar isto?
– Não. Ainda não.
Era claro que precisava de recolher mais informação, por isso despediu-se do Barbo. Ele hesitou, demorou a desviar o olhar, até que se decidiu e voltou para junto dos seus.
Curiosa com o impacto daquele fenómeno no meio terrestre, decidiu espreitar os campos circundantes. De onde se encontrava, reconheceu as formas de jacintos de água à superfície. Colocou a cabeça por baixo de uma das plantas e levantou-a até os seus olhos emergirem. Qual não foi o seu espanto quando viu um rapaz corpulento, agachado sobre a margem do rio, com as mãos cheias de terra quase a tocar na água, a fitá-la, atónito. Quando ela pestanejou uma vez, o jovem desequilibrou-se e caiu. Entre respirações aceleradas, perguntou:
– Quem és tu?
Melusina pestanejou de novo. Diminutas gotículas escorregaram de umas pestanas para as outras.
– Quem és tu? – perguntou de novo, erguendo a voz.
A sereia semicerrou os olhos; rugas surgiram em cada canto. O rapaz engoliu a custo e quando falou a seguir, a voz saiu-lhe rouca, quase sussurrada:
– O que és tu?
Ela podia ter fugido. Ela podia ter batido a sua cauda de serpente, rasgado aquelas águas, rio acima. Por sistema, era a estratégia que utilizava em encontros inesperados com humanos: desaparecia, deixando-os a duvidar do que tinham visto. Raramente falhava. Contudo, desta vez, nadou em direção à margem, sem nunca mostrar mais do que a coroa da cabeça, a testa e os olhos. O homem rastejou para trás.
– Que queres de mim?
As bochechas de Melusina elevaram-se à tona d’água. Ele percebeu que ela esboçava um sorriso. Com as mãos apoiadas no solo, aproximou o tronco do limite da plantação. Um gafanhoto saltou. Nenhum dos dois desviou o olhar.
– Quem és tu? – rugas cravavam a expressão do jovem.
O rosto da sua interlocutora emergiu em pleno para lhe responder:
– O meu nome é Melusina.
A voz da sereia penetrou nos tímpanos do homem, ligeira e inebriante. Os seus lábios apartaram-se. Aquele som não podia pertencer ao mundo terreno. Depois, os olhos arregalaram-se: madeixas de cabelo quase verde ladeavam um rosto esculpido por um cinzel divino; os ângulos eram acutilantes e as curvas, seguras e simétricas. Na sua face estava plasmada a simbiose perfeita entre o plano físico e o plano transcendente. Sentiu uma ânsia dentro do peito, como se o coração tivesse parado e estivesse a aprender a bater de novo.
– Qual é o teu nome?
– Chamo-me Raimundo.
Ao estender um dos seus braços esguios, Melusina alcançou uma pedra encrustada na margem e, assim apoiada pela mão, arrastou o resto do corpo consigo. O olhar do agricultor desviou-se para os dedos, ligados por membranas interdigitais finas, quase transparentes. Com a distância encurtada entre os dois, ela confessou o que desejava:
– Raimundo, eu quero informações.
Capítulo III
E informações obteve. Ao início, tiradas a ferro. Raimundo distraía-se com o contorno agudo do rosto de Melusina, os seus olhos cor de musgo, raiados pelo azul do céu num dia primaveril; as ondulações que apareciam na sua testa ao franzir o sobrolho e o círculo perfeito do “O” que os seus lábios produziam quando se espantava. Cada sílaba gerava nele um deleite indescritível. Não obstante, à medida que o diálogo se desenrolou, estas sensações suavizaram-se. O par conversou por horas.
Raimundo era agricultor. A sua família lavrava um dos campos, nas margens do rio. Contou a Melusina que as culturas também tinham sido afetadas. A problemática principiara no outono passado. Pouco do que tinham plantado, vingara. No inverno, ainda colheram umas couves. As árvores de fruto – cerejeiras e nespereiras, sobretudo –, bem como, a alface, o rabanete e o espinafre recuperaram em parte, durante a primavera. Veio o verão, um sol abrasador ameaçara queimar o feijão, as macieiras e as abobreiras, mas os agricultores tinham conseguido proteger a maior parte das plantações e das árvores. No final da estação estival, o solo empobreceu de novo e, assim, o ciclo de catástrofe repetia-se. Avizinhava-se mais um ano sem maçãs ou castanhas; abóboras ou trigo. As despensas mingavam. Na casa de Raimundo, um lar de muitos irmãos, a fome crescia a cada dia que passava.
– Houve alguma mudança durante o ano passado? Algo que nunca tivesse acontecido antes? – questionou Melusina.
– Foi um ano de muito calor, mesmo na primavera. Ia ficando tudo queimado, outra vez.
– Outra vez? Então, já estavam a ter problemas há mais de um ano? E como é que conseguiram proteger as culturas do calor este verão?
Os lábios de Raimundo contraíram-se e colocaram-se de lado. A resposta exigia uma busca ao banco de memórias, para reconstruir os acontecimentos relevantes num discurso lógico. Melusina aproximou-se. Este movimento arrancou-o dos pensamentos. Pigarreou e respondeu:
– Há dois anos, o nosso arrozal abrasou por causa de um sol escaldante. O arroz que produzimos é único no reino. No ano seguinte, El-Rei pediu aos alquimistas que viviam nos seus territórios uma solução completa e rápida para estes problemas. A mistela vencedora, o pó branco, saiu, segundo se diz, da forja de um alquimista louco. Com muita certeza e esperança, o rei mandou cobrir os terrenos com essa mistura. O que chegou ao povo é que aquele tratamento era como uma roupa que vestia os troncos das árvores, os caules e folhas das plantas e, assim, o sol não os podia queimar. Todo o agricultor nesta zona deveria fazê-lo, sob pena de prisão, ou pior, só Deus sabe. Isto aconteceu em maio do ano passado. A verdade é que o alquimista e o nosso Rei tinham razão. O sol não lhes tocou.
A sereia notou que um cobertor espesso de nuvens cobria o céu, fazendo com que o rio adquirisse um tom mais lúgubre. Um guarda-rios sobrevoou as águas. Empoleirou-se num galho da ameixeira que sombreava o par, cantou duas ou três notas e, depois, bateu asas. Melusina ainda o seguia com o olhar, quando concluiu:
– E no outono tudo começou.
– Sim. Pelo menos, a parte do problema que não conseguimos explicar.
Bastou Raimundo ouvir as próprias palavras, para que uma ideia se lhe revelasse. Não hesitou em perguntar:
– Achas que as duas coisas estão ligadas?
– Onde posso encontrar esse alquimista?
– Por acaso, ele vivia na redondezas. A forja dele ficava lá para cima, junto à nascente. Dizem que ele armazenou grandes quantidades desse composto lá. Mas, a verdade é que ele desapareceu, tem uns meses já. Ninguém sabe o que lhe aconteceu.
– Hmm. Sobrou algum desse produto?
– Sim. Eu ainda tenho uma medida em casa.
– Amanhã, aos primeiros raios de sol, encontramo-nos aqui. Traz o pó.
Nada mais acrescentou antes de desaparecer no mundo aquático. Raimundo ficou especado a olhar as ligeiras ondas que a sereia provocara ao submergir. Quando estas se dissiparam, não havia vestígios do seu encontro com Melusina. Deitou-se na erva. Escutou o seu coração. Não podia acreditar que aquele pulsar que o acompanhara, durante tanto tempo, pudesse agora emitir um som diferente. Mas era isso que sentia, no rescaldo da experiência mais sísmica da sua vida.
Capítulo IV
Sísmico seria um adjetivo adequado para descrever as cenas seguintes.
O agricultor fez como a sereia instruíra, embora tenha chegado ao local designado com a manhã pouco desembaraçada da noite. Debalde perscrutou as águas à procura da criatura, a razão do seu desgarramento. Melusina emergiu quando a luz tocou o rio. Assim que viu Raimundo, o seu rosto resplandeceu. Ele não conseguiu pôr verbo pós sujeito, nem predicado pós verbo. Por isso, levantou a saca que continha a mistela, em sinal de demonstração. Ela nadou até à margem e ergueu o braço e tronco para a alcançar. No dia anterior, apenas tinha revelado o rosto, mas agora o rapaz podia ver como o seu longo cabelo escorregava sobre o contorno dos seus seios, sobre os mamilos, até ao umbigo. Uma vertigem afligiu-o e não conseguiu evitar dar um passo atrás. Erubescido, desviou o olhar. A sereia pontuou o pequeno tumulto com um risinho: tinha-se esquecido do pudor dos humanos. Enquanto se voltava a esconder na água, pousou a saca na margem. Estudou o pó com todos os seus sentidos, mas o gosto provou-se o mais revelador.
– Então? – indagou o rapaz, ao reparar no esgar de nojo da sereia.
– A água sabe a isto. A morte neste rio sabe a isto.
Um breve som de espanto saiu da boca do jovem agricultor.
– Diz-me Raimundo. Os humanos têm tido problemas de saúde?
A engrenagem da mente começou a trabalhar por detrás dos olhos, à procura de um padrão. Finalmente, o jovem disse:
– Hmm, não tenho a certeza. O que tem acontecido é que na minha casa quase todos se têm queixado de dores nos rins, incluindo os mais novos.
Melusina pediu-lhe que apontasse o local exato dessas aflições.
– Ahá!
– Em que é que estás a pensar? – perguntou Raimundo.
– Já tenho uma hipótese formulada.
– Uma quê?
– Deixa lá. Só mais uma coisa: vocês espalharam esse composto há uns meses, não foi? Como é que eu não vejo vestígios dele, em parte nenhuma? Fora d’água, isto é.
Se ela o tivesse visto, se calhar teria chegado a uma conclusão mais cedo.
– Porque as primeiras chuvas lavam sempre os campos do pó.
Laivos de vermelho pincelaram as maçãs do rosto da sereia. Como é que ela não tinha pensado naquilo antes de falar? Que estupidez, devia ter estado calada. Oh, que interessava isso? Não se podia esquecer, foco, foco, foco, o Barbo, a sua família, as algas e o musgo. Arranjaria uma solução, mas necessitava de ajuda, sim, ia pedir-lha… em breve, mas, espera, será que ele tinha reparado? Precisava de dizer alguma coisa.
– Certo. Então, até amanhã – foram as palavras que Melusina encontrou, um ser que tinha presenciado o desmoronamento de impérios, o erguer de civilizações, morte e vida em igual medida.
Ele não notou esta atrapalhação, porque também a sua mente se encontrava em convulsão.
– Espera!
Melusina virou-se, mesmo antes de submergir.
– Ainda não me disseste o que te vai na cabeça.
– Ah, sim. Tens razão.
– Então, quer dizer que… Quer dizer que o pó que tem protegido as nossas culturas é responsável por tudo isto?
Ela fitou-o. O agricultor ainda não tinha assentado tijolo sob tijolo – a casa ainda não fazia sentido, por isso, deixou-o completar o raciocínio.
– As chuvas levaram a mistela para o rio… – sussurrou Raimundo. Depois, os lábios laboraram um ínfimo movimento, mas recuou. – O que é que as dores nos rins têm a ver com isto?
A sereia contou-lhe o que suspeitava: o composto continha uma substância que se encrostava nos rins, dando origem a pedras que, por sua vez, eram as responsáveis pelas dores, descritas por ele. Além disso, também impediam que a urina fluísse, o que significava que os humanos poderiam vir a sofrer graves problemas de saúde. Raimundo baixou a cabeça e passou a mão pelo cabelo. Quis saber como é que ela possuía aquele conhecimento. A sereia já tinha observado fenómenos semelhantes noutros animais, peixes e mamíferos, que partilhavam o mesmo tipo de sistema excretor dos humanos. Ele ergueu a cabeça, perplexo. Melusina considerou excessivo revelar-lhe que realizava autópsias, autorizadas pela família, sempre que mortes inexplicáveis ocorriam ao seu redor. No entanto, nunca se tinha deparado com tais proporções. Acreditava que pudesse ser explicado pela presença do laboratório do alquimista junto à nascente, pela grande área de dispersão, banhada pelo mesmo rio, bem como, pela repetição do fenómeno climatérico.
– Nós somos a causa do problema. Nós, os humanos. Tudo começou fora d’água com a maldita mistela, que foi arrastada ao rio, pelas chuvas, e depois devolvida à terra, pela rega. E neste caminho, deixou a marca de um veneno.
Entreolharam-se, mas não foi uma daquelas trocas de olhar efémeras. Não, esta partilha foi além dos sentidos. A Natureza vivia de um equilíbrio fino e intrincado; universal, mas frágil. Fios criavam laços entre a terra e o reino protista, os fungos e as plantas, o céu e os animais. Mas esses fios eram invisíveis ao Homem. Esta ideia, tanto maravilhosa, como aterradora, foi a última delicadeza que compartilharam antes de se despedirem, naquela manhã de outono.
Capítulo V
Nessa mesma manhã de outono, a Melusina procurava o Barbo. Estava ansiosa por lhe contar as suas descobertas. Ele seria um bom mediador entre ela e todos os outros seres vivos daquele habitat.
A luz quase não penetrava na água de tão empestado estava o rio. Ao ondular a cauda robusta, as escamas da mulher-serpente não cintilavam. Neste ziguezague rio adentro, avistou as patinhas de um escaravelho aquático a remar, à superfície da massa de água. Nadou na sua direção: ele podia ter avistado o cardume do Barbo. Quando se apercebeu da presença de Melusina, enrijeceu. Ela sorriu-lhe e acenou. As patas dianteiras mexeram-se, um movimento semelhante a um espasmo. Isto não a demoveu de apresentar-se, tal como fizera sempre que encontrara habitantes do rio. Surpreendera-se com a sua diversidade. Que mundo fora aquele. Agora, o devir era uma sombra.
Chamava-se Norberto e tinha nascido sem uma das patas traseiras. Relatou-lhe os seus infortúnios. Nos últimos dois dias, Melusina ouvira tantos outros; de cada vez, o seu coração enchia-se de mágoa. Essa empatia pareceu reverberar na água, pois o escaravelho sentiu-a como uma onda. A dado momento, a sereia revelou-lhe que procurava o Barbo. Ditou a feliz coincidência que Norberto tenha, sim senhora, notado um conjunto de barbos, rio acima, momentos antes daquela agradável conversa. Perguntou-lhe, ainda, se a podia acompanhar, atrelado ao seu ombro, pois, confessou-lhe, desejava ser prestável. A mulher-serpente aceitou a proposta e lá foram eles em busca do seu amigo.
Calcorreando a porção superficial da massa d’água, onde Norberto se sentia mais confortável, em poucos minutos chegaram à nascente do rio. Qual não foi a surpresa, quando se depararam com um cardume de barbos, é certo, mas também de tainhas, ruivacos e bogas. Entre olhares esbugalhados, bocas abertas e sussurros a meia-voz, Melusina distinguiu o Barbo dos restantes. Ele separou-se da multidão e disse:
– Folgo em ver-te de novo.
– Eu também. Venho vos dar novidades.
Os peixes não são capazes de sorrir, mas, caso fossem, teria sido essa a expressão no rosto do Barbo.
– Isso quer dizer que decidiste ficar? Vais nos ajudar?
– Ficarei o tempo que for necessário.
Os movimentos da cauda do Barbo tornaram-se menos desesperados. Agradeceu-lhe em nome de todos e Melusina fez uma pequena vénia com a cabeça. Depois, desviou o olhar para a plateia diante de si.
– Reunimo-nos aqui porque precisamos de arranjar uma solução – explicou o peixe, voltando-se momentaneamente para os restantes. – Eles já sabem quem és. Os anciãos contaram as tuas histórias. Bem, em parte. Já sabes como é, memória de peixe – revirou os olhos.
A sereia não conteve uma gargalhada. Norberto tão pouco.
– Oh, Barbo.
O peixe sentiu-se orgulhoso daquele feito.
Quando Melusina falou de novo, dirigiu-se à assembleia.
– Caros peixes, creio que já me conhecem, por isso, dispenso apresentações. Este é o meu amigo, Norberto. Veio nos ajudar também – apontou para o seu ombro direito. O escaravelho levantou uma das patas. Depois, a sereia anunciou: – Penso ter descoberto, com a ajuda de um humano, a causa desta destruição.
Em uníssono, os presentes soltaram um suspiro. Não houve ninguém indiferente à revelação, especialmente, porque envolvia a cooperação de um humano. Ela passou a explanar a sua hipótese. A sua voz celestial ressoava. As guelras oscilavam e bolhas de vários tamanhos ascendiam; chegavam à tona d’água e, puff, rebentavam. Rematou o seu discurso com uma nota de esperança: as próximas estações levariam o pó em direção ao oceano, haveria tempo para recuperar e, caso a Mãe Natureza o permitisse, no ano seguinte, o sol daria tréguas. Ninguém colocou a pergunta difícil. A plateia vislumbrou aquela fímbria de luz e agarrou-a.
Capítulo VI
Nos meses seguintes, a incerteza despontou numa ansiedade coletiva; cresceu até povoar todos os cantos das mentes. Ainda assim, nos caminhos quotidianos, os habitantes do rio deparavam-se com uma espiga-de-água-de-bronze que sobrevivia na escuridão, uma boga que desovava ou uma libelinha que ousava pousar nas águas e atribuíam-lhes um significado divino. A Mãe Natureza não os abandonaria.
Esses sentimentos não eram alheios a Melusina. No entanto, cabia-lhe a tarefa de avançar com planos alternativos, caso as condições meteorológicas não fossem favoráveis. Raimundo, Norberto e o Barbo voluntariaram-se para ajudar. A princípio, a estranheza da convivialidade tinha sido inevitável. No entanto, esbateu-se, pela mestria comunicativa de Melusina. Já o compromisso que tinham assumido, revelou-se próximo do inalcançável. Como informar o Rei de que o desastre natural era o resultado de uma ordem sua? Como impedir que a povoação usasse o pó nas culturas, caso o monarca o ordenasse? Como proteger o anonimato da sereia, no meio de tudo isto? Noite após noite, o quarteto reuniu-se debaixo da ameixeira, em vão.
A chuva ainda caia, o sol acariciava os dias e as rosas desabrochavam, quando Norberto e o Barbo deixaram de comparecer aos encontros. Eles repararam nos olhares fugidios, nos toques propositados, nas peles coradas – um laço florescia da aliança inusitada entre uma sereia e um homem. Ficariam contentes com uma união, agora que conheciam o humano, e estavam investidos em facilitá-la. Daí em diante, a noite trazia, a Melusina e a Raimundo, a privacidade necessária para entrelaçarem as suas vidas. Falavam das aventuras dela e das aspirações dele. A sereia encostava o rosto às mãos calejadas do agricultor. Estudavam as expressões um do outro e pontilhavam as conversas com sorrisos, embevecidos em narrativas mundanas. Construíam planos para um futuro em conjunto, naquele lugar. Por vezes, ele expressava os seus anseios desta forma:
– Melusina, tu és o ser perfeito, saído das brumas de histórias antigas sobre o mar.
Ela corava.
– És mesmo como as sereias do oceano? Se eu te puxar para terra, a tua cauda de peixe desaparece?
– Não, não sou como as sereias das tuas histórias.
– Quando me mostras como és?
Os lábios tocavam-se.
– Ainda é cedo.
Numa noite banhada de branco, os dois enamorados decidiram que era tempo de agir. Embora não tivessem uma solução definitiva, não podiam ficar de braços cruzados. Os habitantes do rio concordaram. A cada dia, o sol encimava-se mais no céu, vertendo raios ameaçadores. Raimundo faria propagar a informação de que o pó da ordem real era o instigador daquele desastre. Se o povo acreditasse nele e mostrasse descontentamento, poderiam fazer com que El-Rei os ouvisse.
O rapaz iniciou a empreitada. Primeiro, contou à família. Os pais ficaram amedrontados. Acreditavam no filho, mas quanto lhe custaria a rebeldia? Sobretudo, quando não conseguia providenciar provas concretas. Ainda assim, a notícia correu. Infiltrou-se na tasca e, de seguida, nas casas. Depois, viajou para outras aldeias, ao longo do rio. Raimundo e a família começaram a receber, por um lado, olhares reprovadores e insultos; por outro lado, elogios e promessas de apoio. Não se debatia mais nada, naqueles dias. Apesar de tudo, Melusina mostrou-se entusiasmada.
– Deixa-os falar. Não vês? Isso é bom para nós.
O jovem elevou o sobrolho.
– Com tanto falatório, os ouvidos reais não se farão mocos – esclareceu a sereia.
– Tens razão, tens razão – anuiu o rapaz, acariciando-lhe a maçã do rosto com o polegar.
Ela inclinou a cabeça, aprofundando o toque.
– Eu sei que não tem sido fácil para ti e para a tua família. Mas estou muito orgulhosa do que tens feito por todos nós.
Bastou ouvir estas palavras: as preocupações do agricultor eclipsaram-se.
Capítulo VII
Efetivamente, a resposta real não foi alheia às preocupações do povo. A guarda chegou numa manhã quente de final de primavera. O monarca interpretara as informações que ouvira como meros rumores, enraizados num desejo de insurreição. E a insurreição não era tolerada no seu território. O objetivo dos soldados era fazer cumprir a ordem do Rei.
A presença prolongada da guarda real teve um efeito dissuasor na maioria dos apoiantes de Raimundo. Porém, algumas famílias da sua aldeia, resistiam. Tentavam convencer os guardas das suas razões, mas «ordens são ordens», diziam eles.
O rio agitava-se e a morte espreitava. À medida que Raimundo trazia novas a Melusina, a Norberto e ao Barbo, a impotência descia ao mundo aquático. Tornou-se numa bola gigante, confusa, em constante movimento, impossível de parar. Além disso, não tardou até que os soldados descobrissem a fonte da resistência. Sobre uma chuva de ameaças de morte, amigo voltou-se contra amigo, e o nome de Raimundo veio ao de cima.
O crepúsculo instalava-se, os raros gafanhotos cantavam e o agricultor chegava ao pomar, em torno de sua casa. O solo absorvera o calor do dia e emanava-o agora. A cada passo lânguido, nuvens de pó levantavam-se – podia sentir o sabor a terra. Cabisbaixo, ouviu os irmãos chamarem por ele. Corriam na sua direção. A sua mãe veio à porta e fez-lhe um sinal urgente. Ao que parecia, os homens do rei andavam à procura dele para o prender. Ele agarrou de dois pães, beijou a testa da mãe, abraçou os irmãos e assegurou-lhes que tinha um plano. Ele e a sua amada tinham discutido esta possibilidade anteriormente: fugiria rumo ao oceano até encontrar a foz de um rio próximo, onde Melusina pudesse encontrá-lo. Saiu esbaforido de casa, tomando a vereda que dava para o rio. Percorria o caminho que outrora o conduzira à paz e à felicidade, agora com o peso da incerteza e do medo.
Ao atingir a margem do rio, chamou a sua amada: agitou as águas e atirou três pedras à água. A Melusina surgiu. Carregava um franzir de sobrolho.
– Vai buscar o barco, rápido! – ordenou Raimundo.
Assim, o plano de fuga foi posto em ação. Uns segundos depois, o agricultor viu a embarcação ser puxada para as margens. Ao mesmo tempo, um braço envolveu o seu pescoço, apertou-o até o asfixiar. Ele tentou libertar-se, mas foi empurrado para o lado, onde se viu frente-a-frente com um soldado que empunhava um cutelo. Era o seu fim! Fechou os olhos… nada. Ouviu dois gritos: um surdo, outro livre. Uma cauda de serpente, monumental e húmida, reluzia agora em redor do homem que o tentara matar. Envolvia-o numa hélice mortal. Apertava e esmagava.
Raimundo seguiu a vasta cauda com o olhar. Uma criatura de dentes diamantinos, afiados, e auréolas escuras e enrugadas à volta dos olhos, sibilava no meio do rio. A visão do agricultor deteve-se na anca da quimera, a transição entre mulher e réptil. Um esgar. Asco. O coração da sereia implodiu.
Um movimento na periferia impeliu o rapaz a voltar-se. O soldado, preso na espiral, tremia. A sua cabeça, inchada e roxa, perdeu sustentação e, por fim, todo o seu corpo, assim que a cauda o desenrolou. Petrificado até instantes, o outro soldado soltou um novo grito e fugiu a sete pés. A cauda mexeu-se: a mulher-serpente recolhia-a para dentro de água. A visão daquele membro animalesco e viscoso, em movimento, como se tivesse vontade própria, provocou em Raimundo uma ânsia de vómito. O coração de Melusina deitou uma golfada de sangue.
Subjugado ao solo, de joelhos, o jovem olhou o morto que jazia à sua frente – os olhos esbugalhados e a boca aberta perturbaram-no sobremaneira. Palavras ininteligíveis saíram-lhe da boca. A mulher-serpente nadou para junto da margem. Ele tinha cerrado os olhos e não se virara para ela.
– Raimundo…
Ele sacudiu a cabeça.
Ela tentou tocar-lhe no ombro, mas ele desviou-se.
– Quem és tu? – sussurrou Raimundo, finalmente fitando-a.
Aquela pergunta esfolou-a.
– Como foste capaz? – continuou o agricultor.
– Ele ia matar-te.
– Tinhas alternativas.
– Mas, Raimundo…
– Porque escondeste a tua cauda de mim?
– Porque tu estavas apaixonado por uma imagem que criaste na cabeça. Tive receio de que os teus sentimentos dependessem dela.
Ele ergueu o rosto aos céus; os olhos fecharam-se e os punhos cerraram-se. Depois, disse:
– Talvez tenhas razão. Eu nunca vou conseguir esquecer isto – dirigiu-se a Melusina. – Fez-me perceber… Eu não sou capaz de te amar.
Capítulo VIII
Nas profundezas do rio, Melusina sangrou. Gritos dantescos, desenterrados das suas entranhas, amplificaram-se num tremor de terra — um zunido grave assolou a região. Os humanos prostraram-se no solo. O abalo derrubou árvores, derreou casas e rachou pedra. Mas, a consequência mais calamitosa do desgosto da sereia, foi uma derrocada. Uma derrocada que soterrou a nascente do rio. O Barbo e Norberto apressaram-se a procurar a mulher-serpente. Encontraram-na no fundo do rio, enrolada na sua cauda. Em breve, não haveria onde se esconder. Por isso, Melusina foi obrigada a encarar a destruição que provocara. Viajou com eles, até dar com o deslizamento de terra. Chorou rios, até que ela própria se transformou em lágrimas. Melusina preencheu o caudal de tal maneira, que não havia leito para tanta água. Assim, um novo rio, de seu nome Lena, surgiu ligado ao primeiro, na origem e no destino.
Quanto a Raimundo e aos humanos da região, interpretaram o fenómeno geológico como um sinal divino. Perante a ira de Deus, também El-Rei se vergara: ordenou que, nas suas terras, aquela mistela jamais seria usada.
Passadas muitas luas, Norberto, o Barbo e os restantes habitantes aquáticos viram os seus esforços compensados: um caudal límpido e constante brotava de novo da nascente. Tinham conseguido escavar uma saída para a água. Essa dádiva também fora oferecida por Melusina.
A memória viva destes eventos perdeu-se no tempo, contudo o passado deixa sempre rasto. Os ecos aguardavam escuta.
Epílogo
Do túnel, silêncio. Chamo: Melusina! Melusina! Melusina!
No eco, distingo dois rios: Lena e Lis.